quarta-feira, 4 de julho de 2012

Pedro, o profeta da descrença

Pedro era uma criança comum, de uma família tradicional. Foi batizado, fez crisma e primeira comunhão. O padre, amigo da família, chegou a sugerir que possuía vocação eclesiástica. Mas Pedro cresceu e é um homem ocupado hoje em dia. Como todo bom popular, acorda cedo, anda de ônibus e trabalha mais para pagar as contas do que para se dignificar. Pedro não vai mais à missa no domingo, não se confessa e nem pede mais a benção aos progenitores. Aos olhos do pai - e do padre - é um degenerado. Ele, por sua vez, apenas acredita que não tem mais tempo para acreditar.

Mas, num dies dominicus qualquer, Pedro teve sua apoteose. Vinha sonambulando ao balanço do coletivo, após uma semana de provações maiores do que as costumeiras, quando um senhor subiu à bordo, pedindo dinheiro para a caridade. Ao ouvi-lo dizer as palavras "que Deus toque seu coração", Pedro sentiu um calor no peito, uma ânsia sobre-humana, uma comoção tremenda. Só teve tempo de pedir perdão antes de soltar um urro de dor e cair desacordado.

No fim das contas era apenas um infarto, mas pelo menos Pedro morreu crente.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Visões

Vejo homens arrastando tarrafas por sobre a ponte, entre os carros engarrafados.
Vejo carros como tarrafas, arrastando homens por sobre a ponte engarrafada.
Vejo a ponte arrastando carros em tarrafas e homens engarrafados.

Vejo um casal namorando na soleira do portão.
Ele veio, como de costume, com sua bicicleta velha e ficou até bem tarde.
Vejo um casal namorando na soleira do portão.
Ele veio, como de costume, com sua motocicleta usada e ficou um bom tempo.
Vejo um casal namorando na soleira do portão.
Ele veio, como de costume, com seu carro novo e quase não ficou por lá.
Nunca mais vi o casal namorando na soleira do portão.
Não sei se foi ela quem se mudou, ou se foi o sentimento.

Vi uma criança que não gostava de garotos maiores.
Vi um garoto que não gostava de crianças pequenas.
Um jovem viu a felicidade nascer com uma criança.

Vejo poesia onde não tem.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Trinca

Era o primeiro dia
Olhares se encontram, risadinhas tímidas
O chão coberto por garrafas recém-esvaziadas
Que aceleram o coração, motor dos grandes feitos
Tudo será festa, certamente.

Era o segundo dia
Olhares não se descruzam, bocas não se separam
O chão coberto por corpos nus e sentimentos
Que aceleram o coração, músculo emulador de paixões
Tudo é festa, simplesmente.

Era o terceiro dia
Olhares vazios que se evitam, não há nada a dizer
O chão coberto por saquinhos plásticos usados
Que aceleram o coração, núcleo duro do constrangimento
Tudo foi festa, somente.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Na noite em que conheci Aurora, acordei para a vida

E esta não foi uma noite qualquer. Era uma daquelas noites quentes e abafadas que haviam se tornado recorrentes nos verões recifenses há alguns anos. O cubículo no qual eu residia - um apartamento de quarto/sala/banheiro/cozinha apertados em um edifício mal conservado à beira da Av. Conde da Boa Vista - mais parecia uma estufa. Abri a única janela do imóvel em uma vã tentativa de escapar daquele abafado infernal, mas o ar estava tão estático quanto o concreto e o asfalto que me rodeavam. Sem conseguir dormir, decidi me juntar aos gatos vadios dos parapeitos das varandas e aos cães sarnentos abrigados sob os pontos de parada dos coletivos.

Caminhei por muito tempo sem ver ninguém. Na Rua da Aurora, às margens do Capibaribe, ainda tentei trocar umas idéias com Manuel Bandeira, mas ele me pareceu mais calado e tedioso que o de costume. Continuei a vagar. E de tanto vagar, divagar devagar. Este era, para muitas pessoas próximas, um dos meus maiores defeitos: pensar demais. Uma vez que eu começava, não pegava mais no sono, por mais cansado que estivesse, salvo se houvesse com quem debater meus delírios divagatórios. Mas estava sozinho àquela hora, e isto me irritou profundamente. Quando me preparava para voltar para casa, no entanto, notei movimento na ponte Princesa Isabel. Minha necessidade de conversar me guiou até lá.

Foi então que me deparei com aquela figurinha em pé sobre o beiral da ponte. Não tinha um metro e sessenta, era esbelta, possuía a pele amorenada e o cabelo curto deixava a mostra boa parte do pescoço. Estava descalça e trajava um vestidinho florido que, apesar de muito simples, deixava claro que não se tratava de uma moradora de rua. Sentei ao seu lado e a cumprimentei. Naturalmente, não devolveu aquelas palavras cordiais e se manteve estática, com o olhar opaco perdido em qualquer lugar diferente daquele para o qual seus olhos apontavam.

- Está pensando em pular? Suicidar-se? - perguntei sem alterar o tom de voz. A moça me dirigiu um rápido olhar de soslaio, voltando em seguida a fitar o nada, sem me responder.

- Não precisa responder, sei que está. Mas antes que o faça, eu poderia pedir um favor? Adie sua partida em algumas horas, preciso realmente de outra alma viva com quem conversar - completei em seguida.

Mesmo sem permissão expressa, comecei meu monólogo. Falava sobre os mais variados aspectos da vida e das minhas frustrações cotidianas. Estava tão absorto em devaneios metafísicos a cerca do banal que, quando parei de resmungar, me assustei ao vê-la sentada ao meu lado.

Um silêncio constrangedor se abateu sobre toda a extensão da ponte. E assim continuou até que alguns minutos - que pareceram dias - depois, a menina falou comigo pela primeira vez. Tinha a voz fria e determinada daqueles que passam a crer que esperança é apenas um verbete de dicionário. Contou tudo sobre si, como em um fluxo de consciência espontâneo: falou da educação rígida recebida dos pais - oriundos de uma família abastada do interior; da experiência de conhecer a europa antes de conhecer a capital do seu próprio estado; do sonho de ser médica e dos 3 anos de fracasso continuado nesta empreitada; do companheiro a quem jurou e prometeu todas as benesses do amor legítimo e de como este a abandonou ao saber de sua gravidez. Falou de tudo isto sem se abalar. Senti-me envergonhado com o quão diminutas se tornaram as minhas insatisfações frente àquela vida que acabara de se mostrar para mim.

Convidei-a, então, para andar um pouco. Senti-me na obrigação moral de fazer algo por ela. Conforme andávamos pelas ruas estranhamente desertas dos arredores, tentei fazê-la rir algumas vezes - sem sucesso. Descobri que falava magistralmente o francês, e pedi para que me ensinasse algumas palavras. Ela o fez, sempre pegando no meu pé por conta da minha pronúncia. "Seus 'érres' e seus 'ésses' são péssimos" disse, a certa altura do caminho, sem demonstrar reprovação. Aparentemente eram as primeiras palavras amistosas que me dirigia. Continuamos falando sobre teatro, cinema, literatura, línguas e sobre o Recife - "uma poesia viva, porém agonizante" nas palavras da garota desconhecida - até que chegamos novamente à ponte.

Na hora da despedida, repousou as mãozinhas em meu rosto e me beijou as têmporas. Ri ao notar que ficara na ponta dos pés para realizar tal feito. Quando percebeu minha reação, me estapeou carinhosa e energicamente. Seu olhar, antes perdido e opaco, agora chispava e explodia como fogos de artifício e, no canto da boca, se desenhava o protótipo de um sorriso de satisfação.

- Adieu, monsieur clochard - Me disse enquanto ia embora.

Perguntei seu nome, mas apenas fez que não com a cabeça e, sem disfarçar, apertou os olhos para ler a placa no final da ponte que dizia "Rua da Aurora".

- Para você, é Aurora - E então acenou pela última vez.

Cheguei em casa extenuado e, tão logo me deitei, peguei no sono. Acordei após a hora do almoço e liguei a TV enquanto preparava alguma coisa que não fosse enlatada ou condicionada. Quase me acidento com uma faca de cozinha ao ouvir ser anunciada pelo aparelho a notícia de que o corpo de uma jovem de vinte e poucos anos havia sido encontrado boiando próximo à desembocadura do rio. Na casa da falecida, familiares encontraram um bilhete escrito a mão. Não era uma carta de despedida, e sim de agradecimento. Um muito obrigado ao desconhecido que havia lhe proporcionado em sua última noite um raro momento de felicidade.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

(Ama)dor

O poeta ama a angústia
A angústia é o âmago da dor
Angústias sejam boas ou ruins
São o combustível de sua criação
Sub-consciente sádico
Consciência masoquista
Não sabe se vive sonhando
Ou se sonha pra viver.

O poeta ama a dor
Poeta sofrido
Poeta amador.