sexta-feira, 3 de junho de 2011

Na noite em que conheci Aurora, acordei para a vida

E esta não foi uma noite qualquer. Era uma daquelas noites quentes e abafadas que haviam se tornado recorrentes nos verões recifenses há alguns anos. O cubículo no qual eu residia - um apartamento de quarto/sala/banheiro/cozinha apertados em um edifício mal conservado à beira da Av. Conde da Boa Vista - mais parecia uma estufa. Abri a única janela do imóvel em uma vã tentativa de escapar daquele abafado infernal, mas o ar estava tão estático quanto o concreto e o asfalto que me rodeavam. Sem conseguir dormir, decidi me juntar aos gatos vadios dos parapeitos das varandas e aos cães sarnentos abrigados sob os pontos de parada dos coletivos.

Caminhei por muito tempo sem ver ninguém. Na Rua da Aurora, às margens do Capibaribe, ainda tentei trocar umas idéias com Manuel Bandeira, mas ele me pareceu mais calado e tedioso que o de costume. Continuei a vagar. E de tanto vagar, divagar devagar. Este era, para muitas pessoas próximas, um dos meus maiores defeitos: pensar demais. Uma vez que eu começava, não pegava mais no sono, por mais cansado que estivesse, salvo se houvesse com quem debater meus delírios divagatórios. Mas estava sozinho àquela hora, e isto me irritou profundamente. Quando me preparava para voltar para casa, no entanto, notei movimento na ponte Princesa Isabel. Minha necessidade de conversar me guiou até lá.

Foi então que me deparei com aquela figurinha em pé sobre o beiral da ponte. Não tinha um metro e sessenta, era esbelta, possuía a pele amorenada e o cabelo curto deixava a mostra boa parte do pescoço. Estava descalça e trajava um vestidinho florido que, apesar de muito simples, deixava claro que não se tratava de uma moradora de rua. Sentei ao seu lado e a cumprimentei. Naturalmente, não devolveu aquelas palavras cordiais e se manteve estática, com o olhar opaco perdido em qualquer lugar diferente daquele para o qual seus olhos apontavam.

- Está pensando em pular? Suicidar-se? - perguntei sem alterar o tom de voz. A moça me dirigiu um rápido olhar de soslaio, voltando em seguida a fitar o nada, sem me responder.

- Não precisa responder, sei que está. Mas antes que o faça, eu poderia pedir um favor? Adie sua partida em algumas horas, preciso realmente de outra alma viva com quem conversar - completei em seguida.

Mesmo sem permissão expressa, comecei meu monólogo. Falava sobre os mais variados aspectos da vida e das minhas frustrações cotidianas. Estava tão absorto em devaneios metafísicos a cerca do banal que, quando parei de resmungar, me assustei ao vê-la sentada ao meu lado.

Um silêncio constrangedor se abateu sobre toda a extensão da ponte. E assim continuou até que alguns minutos - que pareceram dias - depois, a menina falou comigo pela primeira vez. Tinha a voz fria e determinada daqueles que passam a crer que esperança é apenas um verbete de dicionário. Contou tudo sobre si, como em um fluxo de consciência espontâneo: falou da educação rígida recebida dos pais - oriundos de uma família abastada do interior; da experiência de conhecer a europa antes de conhecer a capital do seu próprio estado; do sonho de ser médica e dos 3 anos de fracasso continuado nesta empreitada; do companheiro a quem jurou e prometeu todas as benesses do amor legítimo e de como este a abandonou ao saber de sua gravidez. Falou de tudo isto sem se abalar. Senti-me envergonhado com o quão diminutas se tornaram as minhas insatisfações frente àquela vida que acabara de se mostrar para mim.

Convidei-a, então, para andar um pouco. Senti-me na obrigação moral de fazer algo por ela. Conforme andávamos pelas ruas estranhamente desertas dos arredores, tentei fazê-la rir algumas vezes - sem sucesso. Descobri que falava magistralmente o francês, e pedi para que me ensinasse algumas palavras. Ela o fez, sempre pegando no meu pé por conta da minha pronúncia. "Seus 'érres' e seus 'ésses' são péssimos" disse, a certa altura do caminho, sem demonstrar reprovação. Aparentemente eram as primeiras palavras amistosas que me dirigia. Continuamos falando sobre teatro, cinema, literatura, línguas e sobre o Recife - "uma poesia viva, porém agonizante" nas palavras da garota desconhecida - até que chegamos novamente à ponte.

Na hora da despedida, repousou as mãozinhas em meu rosto e me beijou as têmporas. Ri ao notar que ficara na ponta dos pés para realizar tal feito. Quando percebeu minha reação, me estapeou carinhosa e energicamente. Seu olhar, antes perdido e opaco, agora chispava e explodia como fogos de artifício e, no canto da boca, se desenhava o protótipo de um sorriso de satisfação.

- Adieu, monsieur clochard - Me disse enquanto ia embora.

Perguntei seu nome, mas apenas fez que não com a cabeça e, sem disfarçar, apertou os olhos para ler a placa no final da ponte que dizia "Rua da Aurora".

- Para você, é Aurora - E então acenou pela última vez.

Cheguei em casa extenuado e, tão logo me deitei, peguei no sono. Acordei após a hora do almoço e liguei a TV enquanto preparava alguma coisa que não fosse enlatada ou condicionada. Quase me acidento com uma faca de cozinha ao ouvir ser anunciada pelo aparelho a notícia de que o corpo de uma jovem de vinte e poucos anos havia sido encontrado boiando próximo à desembocadura do rio. Na casa da falecida, familiares encontraram um bilhete escrito a mão. Não era uma carta de despedida, e sim de agradecimento. Um muito obrigado ao desconhecido que havia lhe proporcionado em sua última noite um raro momento de felicidade.

2 comentários:

  1. Belíssimo conto, meu amigo, parabens. Ficou roxedo mermo!

    ResponderExcluir
  2. Meu amigo, o senhor BOLOU. Tá foderoso mesmo, "Tinha a voz fria e determinada daqueles que passam a crer que esperança é apenas um verbete de dicionário" me fez pensar estar lendo Albert Camus! husahsau


    Foda mesmo. No msn faço mais considerações! VOU TRABAIAR rs

    ResponderExcluir