quinta-feira, 15 de abril de 2010

Lírios roxos

Era sábado. Luís Henrique tirou o carro da garagem mas não dobrou à esquerda como de costume. Luís era um jovem, contudo bem sucedido, advogado. Havia a pouco se tornado sócio de um escritório de advocacia na zona sul e trabalhava da segunda ao sábado. Mas não naquele sábado. Aquele dia tranquilo do mês de março havia amanhecido diferente para Luís. Enquanto se arrumava para ir ao trabalho, tinha a sensação de que havia algo mais importante a fazer. Era mais que uma sensação qualquer, era quase que um sentimento de dever. Assim, ligou para o escritório forçando uma voz muito rouca e cancelou seus compromissos. Deitou no sofá, ainda de terno e gravata, e se pôs a pensar na vida. Alguns minutos depois lembrou-se do número 18. "Hoje é dia 18!". E num pulo rápido pegou as chaves do carro e sem se trocar desceu até a garagem e se pôs a dirigir. Entretanto, não dobrou a esquerda.

Dirigiu sem pressa no sentido contrário ao trabalho. Aquilo era algo impensável nos últimos anos. Anos nos quais ele se dedicou quase que exclusivamente ao trabalho, se afastando de amigos e evitando relacionamentos. A pressa era sua companheira e o trabalho seu melhor amigo. Mas hoje nem mesmo o semáforo fechado o irritava. Muito pelo contrário! Aproveitava as pausas para apreciar ainda mais aqueles arrepios levados que subiam e desciam em suas costas. "Eu até poderia telefonar para todos e marcar um grande reencontro, mas não hoje! Hoje é dia 18!". Quando já estava prestes a chegar em seu destino viu numa pequena barraquinha na esquina uma senhora a vender flores. Encostou o carro. "Senhora, poderia me fazer um buquê com aqueles lírios roxos, por favor? É um presente para alguém especial!". "Se é um presente, por que não rosas, meu filho? Rosas sempre agradam!". Luís recusou de maneira amena, e insistiu nos lírios. "Aquela menina sempre preferiu o roxo ao rosa, disso eu me lembro bem."

Na chegada, que surpresa. Seu Moacir, agora uns quatro anos mais vivido, ainda era o porteiro daquele prédio simples de um subúrbio sossegado da cidade. "Se lembra de mim, seu Moacir?". O senhor de cabelos brancos e encaracolados deu um sorriso moleque. "Pode entrar Luisinho!". Luís sentiu-se aconchegado como a muito não se sentia quando entrou no elevador. Tinha passado dias e dias de sua adolescência naquele prédio, falando com aquele mesmo porteiro e subindo naquele mesmo elevador. E assim, cinco anos de lembranças desabrocharam nos cinco segundos da subida. Tocou a campainha e sentiu seu coração iniciar uma rufada de tambores que anunciava o que estava por vir.

Quem abriu a porta foi justamente ela, a menina Olívia. Besteira! Não foi a menina e sim a mulher Olívia. Luís permaneceu estático. Lá estava ela, a namoradinha da primeira adolescência, a amiga da juventude, aquela que ele não viu nos últimos quatro anos. Mas era ela mesmo? Os cabelos castanho-escuros caíam sobre as costas contrastando com a pele branca em cachos mais longos do que era capaz de imaginar. Após uma primeira reação de espanto, Olívia abriu aquele grande sorriso meigo e abraçou o amigo, puxando-o para dentro do apartamento. O apartamento, ao contrário da moradora, estava do mesmo jeitinho que Luís lembrava. Quantas lembranças boas traziam aquelas paredes. O primeiro beijo, a descoberta do amor carnal, o resultado do vestibular! Tudo isso ele recebeu ali! Quando voltou de mais essa viagem, notou Olívia a encara-lo. "Lembrei que você prefere roxo ao rosa, não é?".

Sentaram então no sofá da sala. Era aniversário de Olívia, mas ainda assim ela estava sozinha em casa. Os pais tinham voltado para o interior e a irmã havia se mudado não fazia muito. Conversaram sobre a vida, sobre os anos que separavam as lembranças recíprocas do momento de agora. Olívia estava prestes a alcançar seu sonho de menina. "Me formo médica no final do ano, você vem para a formatura, não vem?". Luís aquiesceu e riu. Aqueles quatro anos em nada tinha mudado a relação entre eles. Na saída, Luís viu um CD antigo, presente dele do tempo em que ainda namoravam. Pediu-o emprestado. Queria ter lembranças daquele tempo. Tinha lido meses antes um filósofo que dizia ser a música uma das poucas alegrias da vida e não pode deixar de concordar, ainda mais em se tratando daquelas músicas.

"Caso eu suma novamente e nós nunca mais possamos nos ver, promete que não vai me esquecer?". Luís falou sem pensar e tão logo se arrependeu do que disse. Olívia pareceu não se importar. "E quem disse que você vai sumir? Pelo menos não antes de me devolver o CD!". Riram e se abraçaram. "Falando sério, me promete que não vai sumir?". Olivia agora parecia mais séria, quase apreensiva. Luís conseguiu apenas afirmar com a cabeça antes de sair.

Já na avenida, tomando o caminho de volta para casa, Luís começou a pensar em Olivia. "Por que me lembrei tão subitamente dela hoje?", "Deveria tê-la beijado?", Essas eram as perguntas mais frequentes que fazia a si mesmo. No meio do caminho lembrou do CD. Quis ouvir as músicas que marcaram tão fortemente lembranças em sua memória. Memórias, CDs e direção não são uma combinação feliz. Deve ter sido isso que Luís pensou ao perder o controle do carro, invadir a pista contrária e bater de frente com um caminhão.

Escuro. Era tudo o que ele era capaz de ver. A mais completa escuridão de sentidos. Não ouvia, enxergava, nem sentia nada. Pelo menos até o momento que pôde sentir gotas de chuva caindo em seu rosto. Abriu então os olhos. Era uma tarde nublada, cinza. Para completar a monocromia, todos ao seu redor vestiam preto. Ele não soube dizer exatamente onde estava. "E o caminhão? E o CD? Teria sido tudo um sonho?". Reconheceu então um choro. Era Isabel, amiga dos tempos de colégio, conhecida por ser sentimental demais. Se aproximou do choro e confirmou que se tratava da velha amiga, que estava agora sendo amparada por Roberto, outro amigo dos tempos de menino. Sentiu medo. No centro de toda aquela comoção estava um caixão robusto e comprido. Não quis olhar quem estava lá dentro. Sempre teve muito medo da morte e funerais causavam nele completa aversão.

Quis perguntar a alguém o que estava acontecendo, mas percebeu que não tinha voz. Gritava o mais alto que podia mas nem ele próprio era capaz de se ouvir. Quando estava beirando o desespero, viu alguém que não queria ver naquele lugar. Era a menina-mulher Olívia, cujo vestido preto conseguia contrastar ainda mais com sua pele de neve do que os seus cabelos castanho-escuros. Ela parecia ser a menos abalada entre todos ali até o momento. Olívia se aproximou devagar do caixão. "Você me prometeu que não iria sumir", resmungou ela baixinho antes de se desfazer em pranto.

A verdade atingiu Luís ainda mais forte do que aquele caminhão carregado de combustível, que explodiu logo depois do impacto. Quis gritar, mas continuava sem voz. Quis chorar, mas seus olhos não mais derramavam lágrimas. Quis morrer, mas nem isso ele podia mais fazer. Estava ali, mas não estava.

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